quinta-feira, 31 de março de 2011

O Organista


Chegou pela manhã, como fazia, para respirar a sós o ar puro da capela, quando as luzes começavam a inventar os vitrais, e a abóbada parecia de flores.

Seguiu até o alto, onde ficava o órgão, e sentou-se no banco acariciando as teclas, os olhos fechados, os dedos num leve tremor.

Quando o fole apertava o ar que, libertando-se no mesmo instante atravessava o tubo indo saltar para fora numa explosão de contentamento, sentia a porção de vida que lhe fora reservada na terra. E seus lábios sorriram agradecidos.



(Arte: Luiz Cadaval)

sábado, 26 de março de 2011

Mortiço


Não fui eu quem morreu. Morreu uma profusão – de coisas que eu nunca chegaria a explicar (até porque morri nelas).

Agora visto esta máscara de morte. Para que não se possa dizer nada de mim. Não é raiva, nem orgulho (embora misturem-se também na terra) – mas malícia, provocação: numa palavra – Inocência. Quero ver as máscaras da morte dos outros.



(Arte: Luiz Cadaval)

terça-feira, 22 de março de 2011

Cabaré


Podia bem ser o final do mundo. Ou antes, o que vinha depois. Depois do deserto, dos buracos, da poeira e dos oásis – a pequena casa; discreta, a não ser pela solidão com que se erguia da terra.

Uns carros em volta. Os homens na porta.

História de uma mulher.

O percurso, a casa e todos ali.

Embora não fosse ela que a tudo sustentasse no lugar.

Enquanto se esperava, o sol queimava no mesmo silêncio; podia muito bem nada existir.

Então os homens entravam um punhado por vez. Todas as cadeiras voltadas para a cortina.

A mulher em algum lugar.

De repente, a mão se deixava ver. Delicada e ardente. Surgia dum canto e ali mesmo sumia.

Num outro canto, o pé, e os dedinhos, e as unhas pálidas.

Então uma perna (as luzes apagadas, o holofote no palco), toda uma coxa irrompia, provocando a castidade da cortina. Pra fugir depois dos olhos.

Tudo durava poucos minutos. Quando acabava, acendiam-se as luzes.

Nada era cobrado. Nada era servido.

Os homens se erguiam, e davam lugar aos outros, a sentarem como os primeiros, a espera do escândalo.


(Arte: Luiz Cadaval)

domingo, 20 de março de 2011

A Distância


Pra ela a gente precisa criar olhos. Daqueles que não se cria e não se tem. Ela quem pede sem pedir. A gente que faz sem por que.

Quando está tarde, todos os nossos olhos com a vista cansada, as pálpebras todas entre bravamente erguidas e sonolentas, é então que ela vem. Então que ela gosta de nos pegar de surpresa, a maldita. Quando teríamos olhos apenas para a cama macia.

Ela e os olhos. E no entanto somos felizes.



(Arte: Luiz Cadaval)

quinta-feira, 17 de março de 2011

Romântico


Magnífico, pensou. Estupendo! Fora deste mundo, minha verdadeira casa, a que vi em meu sonho! E lá meus amores. Lá meu querido eu!

Está logo ali, praticamente ao meu alcance! Basta cruzar este poço de jacarés.

E seu rosto verteu as lágrimas.


(Arte: Luiz Cadaval)

terça-feira, 15 de março de 2011

Espera


A velha era católica fervorosa. Levantava-se cada manhã de joelhos. Mesmo quando os primeiros sinais da osteoporose começaram a aparecer. Juntava uma mão na outra, olhava para cima, para o canto descascado no teto do quarto, e fechava os olhos em prece.

Quando viu o moleque do vizinho subir seu muro para pegar um caju que despontava deliciosamente do cajueiro, agarrou a vassoura atrás da porta, saiu soleira a fora brandindo-a nos ares,e num pecado gritou as palavras que jurara jamais deixar manchar seu sacro vocabulário.

Então deixou-se largar na cadeira da varanda, num quase gozo, e soltou a mão de Deus.


(Arte: Luiz Cadaval)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cinza


O cinzeiro estava cheio. Até sua boca cinzenta e enrugada. Umas cinzas caídas na mesa em volta. Mais um cigarro, ainda cabia. Sempre cabia. Perdia-se em meio aos restos mortais dos que, a essa hora, já nem fumaça eram, mas sangue. Ou simplesmente – ar.


(Arte: Luiz Cadaval)

sábado, 12 de março de 2011

Sal


O apartamento ficava de costas para a praia. Da janela, tudo que se via era a rua. Quando se queria olhar na direção do mar – porque o cheiro do sal e as ondas que de vez em quando se ouvia provocavam (para não contar o pressentimento do horizonte) – via-se a parede da cozinha, o armário embutido, cor de creme, meio velho, meio sujo, e o interruptor.

Então café era feito, porque se estava na cozinha. Ou então saía-se a rua, virava-se de costas, e caminhava-se até a praia.

Já bastava a sensação de dar as costas. A maresia de repente atingindo em cheio seu alvo. E no entanto era torturante a ideia de que – eventualmente – seria preciso retornar a casa, a cozinha, e preparar o café enquanto se ouvia as ondas, enquanto areia e sal se desprendiam do corpo junto com a pele morta.


(Arte: Luiz Cadaval)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Banco




Sentiu uma pontada nos nervos. Veio-lhe de surpresa, como costumava acontecer. Se apressou em achar um banco: passaria o susto sentado.

Foi encontrar assento numa praça movimentada, no centro da cidade. Era o horário do almoço, e no espaço de um minuto, via-se centenas de rostos. Sentou na ponta do banco; na outra, um velho fedorento que parecia dormir. Cabeça baixa, braços cruzados, o chapéu fazendo sombra nos olhos.

O susto começava a passar, os nervos aos poucos se despregavam da carne. Seu rosto novamente voltava a ter um aspecto mais ou menos saudável. No mínimo aceitável para durar até o fim do dia.

Quando se sentiu suficientemente calmo, respirou fundo, soltou o ar pela boca, esperou um instante, e levantou. Nisso, o velho, que dormia, despertou, olhou para ele que se preparava para ir embora, e disse:

– O senhor me arranjaria um cigarro.

(Arte: Luiz Cadaval)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sem Título



Era ele, um personagem. Sabia-se à medida que aparecia preto no branco.

Era ele, o personagem. Numa hesitação correu o risco da vida.

Ele – personagem. Quando largou a caneta não se reconheceu.

(Arte: Luiz Cadaval)

terça-feira, 8 de março de 2011

No Cinema

Às vezes sinto olhos em mim. Por exemplo, quando saio do cinema, onde estive sentado no escuro por duas horas como um fantasma. Saio e sinto olhos. Fico pensando se me transformei em outra pessoa, uma que não estou acostumado a ser, e por isso olhos me buscam como buscam o que tropeça a vista. Ou se continuo sendo eu.

domingo, 6 de março de 2011

Num Sonho

No meu sonho, você estava triste. Na mesa, amigos em volta, eu mesmo sentado ali. Você sorria, até; ria. E eu achando que estava triste. Talvez fosse a minha própria tristeza, se insinuando no seu rosto, num olhar desamparado que eu tanto queria adivinhar.

No meu sonho, você queria falar alguma coisa. Eu via nos seus olhos. No meu sonho você queria falar para mim. Tanto que nem me olhava; me evitava, ainda assim docemente. E meu desejo era provar da sua dor.

Agora que acordo, o avesso do sofrimento.

Agora que acordo – vingança.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Folião

O bloco passava em frente a sua casa. As panelas na cozinha tremiam em cima da mesa, como se acompanhando a batida da bateria.

Seu coração também batia apressado, entre assustado e desejoso. Abriu devagarinho a cortina da janela da frente, apenas uma fresta, para ver o que acontecia. Quando viu a multidão, fechou-a e se afastou. O coração tremendo junto das panelas.

Foi para o quarto, zanzando entre uma parede e outra. Chega, pensou. Basta! Vou sair, disse às paredes.

Calçou os sapatos, vestiu uma camisa que lhe parecia apropriada, e fechou a porta atrás de si. De repente, estava no meio da multidão.

Não podia ficar parado, corria o risco de o pisotearem. Foi seguindo a folia, num compasso contido. Socorro!, dizia ao seu coração, que seguia num compasso à frente. Ajudem-me! Dali já não via a casa.

Seu remédio era caminhar. Assim o fez.

Foi dar, horas depois, muito longe do lar, suado e com os pés doloridos, não sabia bem aonde. A multidão dispersara. Estava só outra vez. Virou as costas, e começou o caminho de volta.

Apresentação

Bom, para começo de conversa, preciso justificar a falta dos desenhos prometidos na descrição. Meu pai ainda não os fez. Acho que isso basta.
A idéia do blog partiu de mim, recentemente, visto que venho sido acometido pelo desejo (e a necessidade) de escrever.
Como estou inquieto e ligeiramente incomodado com a página vazia, resolvi postar um texto - para me tranquilizar, e para que algum leitor que, num descuido, tropece por aqui, tenha uma noção da proposta, ao invés de encontrar um espaço vazio.
O primeiro texto acompanha o carnaval, e segue na postagem seguinte.